28 de setembro de 2012

Rua da Coragem

Muita coragem me falta neste instante, mas ela sempre está lá. Levanta, senta. Senta, levanta. As mãos apressadas e trêmulas, as roupas molhadas de tanto trabalho em casa: roupas no varal limpas e aromáticas, comida na panela de dar gosto o cheiro do tempero. E o aroma se espalha pela casa afora até atravessar as cortinas e chegar à vizinhança. E muita coragem me falta, menos a ela que está lá sentada em sua cadeira de balanço. E ela estava lá, fim de tarde, sentada em sua cadeira; cachimbo na mão direita, olhar distante e umas baforadas violentas em direção à janela. Devia estar pensando no tempo em que morou na rua da coragem.


E, de repente, o olhar se fixa: primeiro no cachimbo, depois nas mãos trêmulas. Ah, quantas lembranças têm aquelas mãos encaliçadas junto ao seu olhar perdido! E nenhum sentimento é tão profundo para um ser humano quanto o de impotência. A impossibilidade do (re)viver. A impotência quanto ao próprio tempo: ela o sente agora. Está impotente quanto ao passado, já que não pode voltar até lá, mas contente por conservar as lembranças.

Lembranças da rua da coragem. E nenhuma cortina era suficiente, naquele instante, para encobrir sua visão da rua, do jardim de flores raras da casa do vizinho forte. Nenhuma cortina era suficiente para encobrir sua emoção, como agora. E quanto mais revolvia o passado, mais se envolvia com ele  e mais se comovia. Isso é muito forte para alguém que viveu tudo tão intensamente. E, em alguns momentos, ela se vê arrebatada pela visão das cortinas se revirando nos trilhos junto com os beijos profundos que trocou com o vizinho forte. E relembra suas palavras ao pé do ouvido: "coragem, pequena, coragem, que o tempo vai melhorar" e ela sorria como criança, assim como está sorrindo agora. 

Sorriso largo, bonito e marcante. Ela ainda está viva e isso a anima. O que marcou sua vida na rua da coragem foi a sua persistência, sua luta pra obter o pequeno conforto que tem hoje, além do vizinho forte que a carregava em seus braços e a fazia sorrir quando na tristeza. Isto a faz bem e é o seu motivo de orgulho e vez em quando suspira e sussurra que "nada foi perdido. Nada!". E enche os olhos d'água de tanta emoção ante a recusa de se desprender de um tempo marcante em sua vida. Um tempo em que ainda era possível tocar o vizinho forte e caminhar na rua da coragem.

4 comentários:

  1. Que lindo. Você é blogueira de Carpina? Como é que eu ainda não te conheço? Vc escreve muito bem.
    Vou virar tua seguidora. Beijo.
    Ana Trajano
    umcantinhonobairronovo.blogspot.com.br

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  2. Edilma, esse é um amor eternizado pelas lembranças boas. Um amor que deu coragem a essa mulher no passado e hoje faz seu rosto abrir em sorriso. Adorei!!
    Boa semana!! Beijus,

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  3. Amor eterno amor.
    Também gostei muito Edilma.
    Xerossss

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  4. Você me fez pensar em alguém com quem tive o prazer de conviver. Alguém que fez de minha infância algo adocicado.
    bacio

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Você pode dizer muito ou quase nada; pode apenas fincar as suas unhas e aranhar a minha janela ou derrubar as cortinas, não tem problema: mostre que você está vivo! Obrigada por estar aqui!